“Isso tudo começou depois que o animal saiu do quintal, pulou no sofá e foi para a cama”, diz Cinthya Macedo Pimentel, desviando um olhar maternal para Nina, sua vira-lata.
Advogada que também atua em sucessões, Cinthya usa essa máxima evolucionista para justificar a herança[1] deixada para um pet — herança não de boca, mas testada e juramentada. “Estamos falando de famílias multiespécie, e o animal é mais um integrante dessa família. O que seria esdrúxulo, hoje é aceitável.”
Ela relata seu caso mais recente: uma cliente de meia-idade, moradora de São Paulo, decidiu fazer um testamento em que elencou duas parentes para cuidarem de seus animais (cinco cachorros e dois gatos).
Manifestou o desejo de que todos recebam hospedagem, alimentação e tratamento médico até o fim da vida. Para tanto, as parentes usarão os rendimentos do patrimônio que a cliente deixar, entre eles os oriundos de duas propriedades.
Herdeiros indeterminados
Foram indicadas duas parentes legatárias, e não apenas uma. Assim, se a primeira da lista não aceitar o encargo, a outra o assumirá. Também foram relatados os herdeiros diretos dessas parentes para a hipótese de elas falecerem antes do último animal. Quando não houver mais pet para amparar, o cuidador da hora receberá os bens.
Cada testamento é um, e este tem mais uma peculiaridade: os animais não estão determinados porque podem ser outros até a morte da tutora. A cliente de Cinthya mora num sítio, onde há espaço para abrigar uma população maior, enquanto alguns já estão idosos e podem sucumbir em breve. Decidiu-se que, anualmente, por meio de uma declaração registrada em cartório de notas, serão indicados um veterinário e os animais sob tutela naquele momento. Essa declaração será entregue ao testamenteiro.
Só metade para papai
Cinthya conta que essa mulher não tem filhos nem cônjuge, mas tem pai vivo. Como ascendente, o pai é herdeiro necessário — ascendentes, descendentes e cônjuges se incluem nessa categoria. A herdeiros necessários não se incluem encargos, e sim 50% automáticos do patrimônio, o tanto que o pai receberá se a filha morrer antes dele. Caso ele se vá antes, 100% dos bens serão dirigidos para as duas legatárias, com a tarefa de zelar pelo bem-estar dos animais.
“A bem da verdade, costumo sugerir uma previdência privada em nome de uma terceira pessoa, com uma declaração que justifique o porquê dessa indicação”, afirma a advogada.
A “pessoa”, no caso, poderia ser o pet. Cinthya, por exemplo, já discriminou que sua previdência irá para a sobrevivência de Nina, adotada há nove anos. “Mas, para a minha cliente, isso não funcionaria por causa da rotatividade dos animais e porque a previdência não permite que você obrigue alguém a dispor do valor para aquele fim”, explica. Nesse caso, há que se confiar. Indica-se, mas não se obriga.
Anonimato ou celebridade?
No testamento, a coisa é séria, cabal, com chancela de tabelião. E apesar de haver no país quase 150 milhões de pets (dado de 2021 do Censo Pet, levantamento anual feito pelo Instituto Pet Brasil), legar o patrimônio a um filho de outra espécie ainda é mal digerido pela sociedade, que muitas vezes vê na opção um ato bizarro. Daí o pedido de anonimato dos testadores, que preferem confinar o assunto às quatro paredes de um escritório de advocacia.
No mundo das celebridades, porém, os holofotes são muito bem-vindos. Deixar herança para os animais de companhia ganhou destaque nos últimos tempos — menos por causa da proposta “humanitária” dos influenciadores, mais em função dos valores envolvidos.
A apresentadora de TV americana Oprah Winfrey, de 68 anos, já anunciou que seus cinco cães — os golden retrievers Layla e Luke, a cocker spaniel Sadie e os springer spaniels Lauren e Sunny — herdarão, no coletivo, US$ 30 milhões (cerca de R$ 153 milhões), sendo que cada um tem seu próprio fundo fiduciário.
O estilista alemão Karl Lagerfeld, que morreu em 2019, aos 85 anos, deixou uma fortuna hoje orçada em cerca de R$ 460 milhões para Choupette, sua gata tortie creme-azul da Birmânia. A cantora americana Taylor Swift, de 33 anos, teria lavrado que Olivia Benson, gata da raça Scottish Fold, receberá patrimônio líquido de US$ 97 milhões (cerca de R$ 495 milhões).
E manchetes anunciaram que a escritora brasileira Nélida Piñon, falecida aos 85 anos em dezembro passado, havia legado quatro apartamentos num edifício de luxo à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, para suas duas filhas caninas, Suzy Piñon, pinscher de 13 anos, e Pilara Piñon, chihuahua de 3.
Sujeito de direito?
À parte as cifras, vale ressaltar diferenças entre o direito romano e o anglo-saxão nesse sentido. “Nos Estados Unidos, você pode deixar uma herança diretamente no nome do animal, mas aqui não”, diz Maíra Pereira Vélez, advogada animalista e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da OAB-SP.
Ela explica que, pela nossa legislação de sucessões, é possível fazer um testamento visando ao bem-estar de um animal, mas quem de fato herda o patrimônio é uma pessoa física ou jurídica, com o ônus de zelar por aquilo que esteja estipulado, seja o conforto do pet, o local onde vai morar, o veterinário de confiança.
Isso porque os animais, pela nossa lei, ainda não são reconhecidos como sujeitos de direito, embora alguns tribunais entendam que eles têm lá certos direitos, principalmente em divórcios e separações, quando se decide por ações de guarda e pensão. “Por incrível que pareça, o Código Civil não foi atualizado nesse sentido e o animal continua tendo, para a lei, o mesmo valor que uma cadeira”, diz Maíra.
Tutela canina
Para a advogada Tauanna Vianna, doutoranda e mestre em direito civil com foco em direito de família e sucessões, há um reconhecimento gradual de que o animal não seja mais uma coisa, e sim um ser senciente — capaz de ter sensações —, tanto que já é visto como ente passível de tutela jurídica. Ainda assim, a questão não é unânime.
“Quando se discute a guarda de um animal e enviamos isso para o Tribunal de Justiça, tem juiz que trata do tema na Vara de Direitos Reais, ou seja, de propriedade, enquanto outros o fazem na Vara de Família”, afirma ela.
Já foi aprovado, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, um projeto de lei (PL nº 6.799, de 2013) que alteraria o artigo 82 do Código Civil. O animal deixaria de ser reconhecido apenas como semovente, algo que se move por conta própria, para ser tomado como titular de direito. Apesar de aprovado de maneira bicameral, o projeto empacou.
“Ele retornou a algumas comissões específicas para que se discuta qual será seu alcance, e muito disso tem a ver com a bancada ruralista, que tem medo de reconhecer os animais como sujeitos de direito por conta da criação deles para alimentação e vestuário”, afirma Maíra.
Voltando ao testamento, esteja ele no nome do animal ou não, fica a interrogação: como garantir que o pet receberá o que lhe foi destinado? Maíra indica a presença de três figuras: o testamenteiro, que vai abrir o testamento e dar ciência daquilo que precisa ser cumprido, um administrador da herança, principalmente se ela for de vulto, e um agente fiscalizador, que pode ser pessoa física ou jurídica, como uma associação. “E a gente sempre pode contar com o Ministério Público”, lembra Tauanna. “Mas ele não vai fiscalizar a vida de ninguém, no máximo ouvirá denúncias de terceiros.”
Nós gatos já nascemos ricos
No caso de Choupette, além de duas babás, Françoise e Marjorie — dizem as más línguas humanas que a gata prefere a primeira —, 130 mil seguidores do Instagram vigiam o dia a dia de glamour que Lagerfeld legou a ela. Choupette come à mesa (atualmente num duo de vasilhas de porcelana em preto e branco com tampa banhada a ouro da marca LucyBalu, startup de interiores especializada em artigos para gato), faz check-up, viaja de jatinho, passa férias no campo.
Sabe-se também que um chef, um motorista particular, um guarda-costas e um agente fazem parte do seu entourage.
Dizem que Lagerfeld comparava a felina à infanta Margarida Maria Teresa, figura central do quadro “As Meninas”, de Diego Velázquez, no qual a princesa aparece paparicada por empregados, os olhos cravados nos pais. No Insta, Choupette fita a câmera com seu olhar languidamente azul-safira: “I love you, daddy!”
References
^ herança (economia.uol.com.br)
Fonte: Uol